Por Ivan Crespo Silva  | Artigo de Opinião

A prática de cultivar a terra com a associação de múltiplas espécies, arbóreas e não arbóreas, em uma mesma área, remonta a tempos pretéritos, provavelmente à época dos primórdios da agricultura. Nesse cenário, essa prática, com diferentes composições e arranjos estruturais, representa um modelo secular de exploração sustentável de produtos agrícolas e florestais disseminados na maior parte dos solos agricultáveis do mundo, em particular nas zonas tropicais úmidas, onde se destaca, como berço, a Amazônia brasileira, detentora de cerca de 60% da cobertura florestal da Bacia Amazônica da América do Sul e da maior biodiversidade relativa de florestas do mundo tropical.

A diversidade de espécies das florestas tropicais, bem como os diferentes estratos típicos de sua composição, provavelmente foram fontes inspiradoras para as práticas agroflorestais utilizadas historicamente. Estudos no campo da palinologia, com base em registros de pólen de árvores e de outras plantas cultivadas, apontam para a existência dessa prática de policultivo há pelo menos 1300 anos. Então, pode-se dizer que os sistemas agroflorestais (SAFs) representam uma denominação nova para práticas ancestrais de diferentes populações na tentativa de emular as florestas no que se refere à disponibilidade de múltiplos produtos.

Em termos de sua fundamentação consensual no meio técnico-científico, considerando-se os fundamentos mais usados no mundo, definem-se SAFs como um conjunto de técnicas que combina intencionalmente, em uma mesma unidade de área, espécies florestais (árvores, palmeiras, bambuzeiros) com cultivos agrícolas, com ou sem a presença de animais, para ofertar bens e serviços em bases sustentáveis a partir das interações estabelecidas. A presença do componente florestal de porte arbóreo no conjunto de cultivos é fundamental para a definição da atividade como agroflorestal.

Com isso, de uma maneira geral, os SAFs, em função da natureza de sua composição, são classificados em distintas modalidades (silviagrícolas, silvipastoris e agrossilvipastoris). Há outras classificações complementares que levam em conta o desenho de campo, o padrão de interação entre os componentes, a condição de diversidade presente, a escala temporal da integração dos cultivos no sistema, o grau de autonomia em relação ao uso de insumos, etc. Pela características múltiplas que apresenta, são muitas as possibilidades de classificação complementar dos SAFs.

 A integração entre as espécies pode se dar de maneira simultânea ou escalonada no tempo; a escala temporal pode ser uma estratégia de manejo para atender as exigências fisiológicas das espécies a serem integradas em razão de sua classe ecológica e necessidade de luz (pioneiras, secundárias, clímax). Esse procedimento, no entanto, deve ter como objetivo final a formação do intercultivo agroflorestal de caráter permanente. Há situações em que a combinação entre plantações florestais e agrícolas ocorre de maneira temporária, em fração restrita de tempo, geralmente em áreas de reflorestamento, como medida para o aproveitamento do espaço enquanto o componente arbóreo cresce e se desenvolve, após o quê, pela perda de condições para manter o cultivo agrícola devido ao excesso de sombra (e, claro, a falta de interesse), resta na área apenas a monocultura florestal.  

O Bioma Amazônico, pelas suas características de ambiente quente e úmido que favorecem sobremaneira a biodiversidade de plantas, é um espaço fértil para a prática de SAFs em diversas modalidades e composições. Como uma atividade de base produtiva, os SAFs apresentam potencialidades e desafios para se tornarem escaláveis e ganharem cada vez mais espaço em termos efetivos de cadeia de produção.

A tecnologia agroflorestal, em base aos conhecimentos acumulados, saberes tradicionais e científicos intensificados nos últimos anos, têm potencial para impulsionar a agregação de valor econômico e de inserção ambiental aos produtos oferecidos. No Pará, temos casos de sucesso na implantação e condução de SAFs comercialmente competitivos, como os existentes em Tomé Açu e em outras localidades onde se destaca a produção de cacau sombreado entre outras culturas também estabelecidas no âmbito da tecnologia agroflorestal.

É importante lembrar que o agricultor, para além da expectativa do uso sustentável e resiliente dos recursos naturais, que a ele intrinsecamente interessa, afinal a manutenção de sua atividade depende dessa condição, ele precisa também de retorno econômico para o seu bem-estar e de sua família. Esse é um aspecto muito importante. Por isso, é fundamental que os SAFs apresentem retornos econômicos efetivos aos produtores e também equilíbrio no processo de produção. Equilíbrio esse chamado de dinâmico pelas modificações naturais que o cultivo agroflorestal apresenta ao longo do tempo (crescimento e desenvolvimento das plantas, sombreamento excessivo, mortalidade, etc.), o que demanda monitoramento, podas regulares, replantios e outros ajustes para manter a sustentabilidade e a viabilidade socioeconômica e ambiental do SAF.

Os SAFs podem ser mais diversificados, ou menos diversificados. Quanto mais diverso, de uma maneira geral, mais complexo fica para o produtor realizar o manejo e obter rentabilidade econômica desejada, quando esse é o objetivo. Nesse sentido, o produtor e suas demandas precisam ser sempre o ponto central de todo o processo vinculado ao planejamento e condução do cultivo, bem como ao escoamento da produção para venda e/ou consumo próprio. O universo sociocultural e as expectativas do produtor precisam ser devidamente considerados em termos sociais, econômicos e ambientais.

Diferentes pesquisas têm sido desenvolvidas no Brasil para aprimorar os SAFs e entender melhor a dinâmica desse sistema em distintos contextos. Há, inclusive, políticas públicas com linhas de financiamento e apoio à pesquisa científica e tecnológica relativa aos SAFs, bem como a implantação destes sistemas por agricultores na Amazônia, com destaque para ações oficiais no Estado do Pará, Amazonas e Rondônia. No entanto, tais políticas públicas, lamentavelmente, carecem de difusão mais ampla e de inserção efetiva, em particular, no importante universo dos agricultores familiares.

Um exemplo que pode ilustrar essas políticas públicas referidas é o Plano Setorial de Mitigação e de Adaptação às Mudanças Climáticas para a Consolidação de uma Economia de Baixa Emissão de Carbono na Agricultura (Plano ABC), um dos planos setoriais destacados do Ministério da Agricultura, mas que tem tido pouca efetividade relativa no acesso de agricultores familiares às linhas de crédito disponibilizadas. Esse é um aspecto lamentável do Plano ABC que, embora represente uma importante e oportuna ação de governo, precisa ser mais “amigável” no que se refere à burocracia para a condição de acessibilidade dos produtores familiares e mais difundido, afinal muitos desses produtores ainda desconhecem a existência desse Plano. Por outro lado, o Plano ABC, sem dúvidas, é uma importante oportunidade para a inserção e ampliação do uso de SAFs nas diversas regiões brasileiras, mas que precisa ser aprimorado para o contexto sociocultural da agricultura familiar.

Os SAFs despertam interesses no segmento científico, visando processos socioeconômicos e ambientais, há cerca de 40/50 anos. Antes disso, esses sistemas eram evidenciados de maneira restrita, reducionista, com foco quase exclusivo nas suas nuances ambientais inerentes, sendo deixados de lado os aspectos fundamentais de produção, produtividade e rentabilidade que caracterizam a atratividade de um sistema produtivo eficaz. Nesse amplo contexto, há demandas científicas e sociais muito grandes que, se atendidas, favorecerão a adotabilidade extensiva de SAFs na Amazônia e em outras regiões brasileiras. 

Em relação à possibilidade do uso de espécies econômicas, ou espécies “âncoras”, para a composição de SAFs, uma dos destaques é o açaizeiro, palmeira sobre a qual se detém um bom volume de informações sobre implantação, manejo, condução geral e de mercado. Nesse sentido, ressalta-se o importante trabalho desenvolvido pela Embrapa no Amapá, no arquipélago do Marajó, e em outras regiões do estado do Pará, com ótimos resultados técnico-científicos. Bons resultados também têm sido auferidos por agricultores vinculados a Cooperativa Mista de Tomé-Açú (CAMTA), com os sistemas denominados de SAFTAs, em alusão ao local de origem. Grande parte das informações existentes pode ser ajustada ou apropriada diretamente para compor SAFs com açaizeiro em outras áreas.

O açaí se tornou um alimento muito consumido no mundo, o que aumentou a sua demanda nos últimos 10 anos em mais de 14 mil%. O lado positivo desse aspecto, que cresce cada vez mais, é a ampla difusão desse importante produto. Por outro lado, vale lembrar que o aumento do consumo tem reflexos diretos nos preços praticados para o consumidor local e no ambiente original de produção. Ressalta-se nesse cenário dual, que o consumo intensivo do açaí é tradicionalmente uma identidade cultural do povo paraense. Tradição essa que corre riscos, justamente pelo crescimento da demanda externa sem salvaguardas para o consumo interno.

Considerando as possibilidades de manejo do açaizeiro, cujas biocapacidades (perfilhamento, forma do estipe, tipo de crescimento, arquitetura de copa, tipo de frutificação e rizografia) potencializam perspectivas para várias combinações para cultivos associados, inclusive arbóreos, em modalidades de SAFs, tanto em ambientes de várzea, como também em terra firme. No entanto, para ter ressonância ampliada entre os produtores, as informações sobre a viabilidade do açaizeiro em SAFs necessitam ser mais difundidas nos programas e ações de ATER.

Nesse contexto, é de importância evidenciar, e há informação técnica disponível, que a produtividade do açaizeiro não está diretamente vinculada ao aumento do número de touceiras por unidade de área e que o aumento destas, em função de perdas dos serviços ambientais provocados pela alta densidade de plantas e pela redução da biodiversidade local, impacta negativamente no ambiente e na produção dos frutos do açaí.

Na atualidade, como decorrência da pressão para atender a grande demanda, em várias áreas de produção de açaí comercial, onde seria desejável manejar em torno de 100 touceiras/ha (mais ou menos 300/400 plantas/ha, com 3 ou 4 perfilhos/touceira), há uma monocultura intensificada, praticamente sem manejo, de até 1000 touceiras/ha (podendo ter mais de 3000 plantas/ha), com a remoção da maior parte ou da totalidade da vegetação que havia antes, o que se assemelha, perigosamente, ao modelo agressivo de “plantation” estabelecido no Brasil colonial.

Considerando a densidade e a condição de manejo ou a falta dele, há informações indicando que uma área não manejada e com densidade elevada de plantas pode produzir cerca de 4.500kg/ha de açaí, enquanto uma área manejada e de baixa densidade relativa de plantas em associação com outras espécies pode alcançar em torno de 5.600kg/ha. Ou seja, é possível inferir que quando a biodiversidade ou parte dela é mantida em associação ao açaizal, os serviços ambientais funcionam melhor e o volume e qualidade da produção também são melhores.   

Na minha Tese de doutorado, com base em experimentos estabelecidos em área de terra firme na região de Benevides (PA), na Estação de Recursos Genéticos do Cacau, da CEPLAC, realizei várias combinações entre espécies arbóreas, com destaque para a Erythrina poeppigina (mulungu-do-alto ou suinã), com pupunheira, cacaueiro e açaizeiro (300 plantas/ha), e alcançando resultados biológicos positivos, estabilidade e um bom retorno financeiro. Os resultados da pesquisa foram avaliados por mais de 15 anos.

Outros trabalhos acadêmicos realizados na mesma área também comprovaram os SAFs estabelecidos como viáveis em termos de estabilidade produtiva e rentabilidade. Nessa pesquisa, a umidade do solo e sua capacidade produtiva (cps) se mantiveram como consequência da interação favorável do conjunto de espécies utilizadas, do recorrente aporte de matéria orgânica sobre o solo e da intensa ciclagem de nutrientes estabelecida. Para incrementar este último aspecto, nas áreas experimentais, houve o uso concomitante de Gliricidia sepium, leguminosa de rápido crescimento, alta capacidade para fixação de nitrogênio e aporte de biomassa; nesse contexto de composição e manejo de SAF, o açaizeiro se saiu muito bem.

Outros SAFs podem ser desenvolvidos intercalando o açaizeiro com várias espécies arbóreas e não arbóreas (preferencialmente leguminosas) que possibilitem atender as exigências ecofisiológicas do açaizeiro. O açaizeiro é uma planta pioneira que, embora se desenvolva em sub-bosques em áreas de distribuição natural, apresenta respostas fisiológicas e morfológicas distintas em função do nível de disponibilidade de luz. Em condições favoráveis, de até 80% de disponibilidade de luz, o crescimento do açaizeiro pode ser otimizado conforme foi constatado no município de Bragança (PA), em pesquisas levadas a cabo por SAMPAIO (2003) em sua Tese de doutorado apresentada na Escola de Agricultura Luiz de Queiroz (ESALQ). Esse aspecto deve ser levado em consideração quando do planejamento para inserir o açaizeiro em SAFs.

De uma maneira geral, considerando a potencialidade, a oportunidade e a possibilidade real para uso de açaizeiro em SAFs, a dificuldade maior para que isso ocorra de maneira ampliada está na falta de orientação técnica, capacitação específica e estímulos que favorecem a compreensão e a tomada de consciência para as vantagens desse tipo de uso. A acessibilidade a crédito como fator estimulador, como já relatado, é também outro fator condicionante.

Para finalizar, eu quero enfatizar que sou um entusiasta no sentido de que em futuro próximo possamos ver os SAFs sendo impulsionados e valorizados cada vez mais na Amazônia, inclusive com a presença desejável do açaizeiro, o que, de certa forma, já está acontecendo gradativamente. Se agirmos mais de forma proativa, para solucionar os aspectos limitantes da falta de assistência técnica, capacitação, crédito e de organização social no campo para favorecer a inclusão dos agricultores familiares nos processos decisórios vinculados a sua condição de vida, fatores estes tão necessários para impulsionar e consolidar modelos de produção equilibrados em termos de biológicos, socioeconômicos e ambientais, comos os SAFs, bem planificados e conduzidos, podem prover, eu acredito que novos cenários produtivos, capazes de propiciar a oferta equilibrada de bens e serviços ambientais e de conciliar o bem estar dos produtores com a  conservação dos recursos disponíveis, poderão em breve fazer parte preponderante do auspicioso e sustentável contexto amazônico que tanto vislumbro. Chegaremos lá!

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